Faz tempo que não escrevo nada por aqui — nem sobre Arendt, nem sobre minha filha, que são os principais assuntos desse espaço. E por mais que uma explicação não se faça necessária, a razão disso é aquela mesma que nos impede, a nós todos, de dar pleno seguimento aos nossos gostos pessoais: a danada da vida.
Contudo, ocorreu algo que merece ser salvo da voragem do tempo. Porque escrever é isso: é “pescar pérolas”, para dizer com Walter Benjamin, entre os escombros do tempo, separando determinadas coisas que julgamos valiosas e não queremos, por isso, que se percam no continuum infinito do tempo. Escrever é um pouco como o pensar, uma “picada de não-tempo” — como disse a amiga do Benjamin, a dona Arendt…
E o que aconteceu?
Aconteceu que conversei com uma das pessoas com quem mais gosto de conversar. Uma pessoa com quem, infelizmente, a distância não permite que haja conversas mais longas e mais frequentes. Nem por isso, no entanto, tais conversas perdem sua importância. Aumenta até, eu diria.
Conversei com minha madrinha — ela, que quando pequeno comparei a uma “fada”, tal o encanto que toda conversa com ela produz. E que tem a sutileza de sempre aparecer nos momentos mais apertados. Aqueles em que a gente nem sequer sabe o que pedir, tamanha a confusão.
Conversei com minha madrinha.
E conversar com ela sempre foi um divisor de águas — não apenas pela admirável carreira acadêmica que ela construiu, mas sobretudo pela sensibilidade e pela agudeza do olhar, sempre tão preciso. As conversas com ela costumam dar sentido àquele caos em que a vida às vezes se enrola e a gente se perde. Uma conversa com ela sempre produziu o efeito da luz em um cômodo escuro: aumenta o poder dos nossos próprios olhos.
Pois bem. E qual era o caos do momento?
O caos era, em parte, o comportamento da minha filha — em geral, eu a via excessivamente tensa, ou tímida demais. Mas uma timidez tensa, e não apenas de reserva, que costumava ser da sua própria personalidade. Minha filha andava tensa e isso me preocupava.
Eu olhava para todas as direções — saúde? companhias? fase do desenvolvimento? etc. — para ver se encontrava uma pista para descobrir a razão disso e nada. E foi justamente aí que, nas conversas com minha querida madrinha, percebi que no cômodo escuro em que eu estava, esqueci de olhar para uma outra direção: eu mesmo. Na conversa iluminadora com minha madrinha, ela lançou uma frase em que eu vi o clarão que eu tanto precisava:
“Criança em casa é complicado, pois criança é um para-raio, absorve tudo o que nós, pais, estamos sentindo e vivendo.”
E foi ali que notei que, se minha filha é um para-raio, a tempestade era eu.
Dito e feito.
Ao redirecionar o olhar para mim, notei que o tenso era eu mesmo: eu estava tenso por determinados projetos que não andavam, tenso por dúvidas e ansiedades que começavam a despontar aqui e ali. Notei, então, que eu já não poderia reagir aos meus próprios sentimentos como eu reagia antes da minha filha nascer. E não poderia porque agora tais reações repercutem diretamente nela — “pois criança é um para-raio.”
E não digo isso para gerar mais culpa (ela sempre está presente), mas para enfatizar que atenção à criança é necessária, mas não é o suficiente para gerar o bem-estar dela. Pois o cuidador também precisa estar estável — o que requer, às vezes, colocar o cuidado imediato com a criança em segundo lugar.
Decidimos, assim, priorizar algumas coisas aqui para que tais projetos, que me eram caros, andassem logo. Refizemos a divisão das tarefas da semana, de modo que algumas coisas que me preocupavam pudessem ser, ao menos, encaminhadas.
Adiantei correções da tese, preparei seminários, refiz minhas aulas.
E prestei mais atenção a mim mesmo.
E — ora, ora — a tensão da minha filha desapareceu.
Não havia mais raios a absorver.
Isso tudo me deixou bem pensativo quanto à responsabilidade emocional que temos em relação aos nossos filhos. E não digo aqui do mais óbvio: a nossa relação direta com eles. Não se trata, tão somente, de não agredi-los verbalmente — o que é e deveria ser sempre óbvio.
Trata-se, na verdade, de prestar atenção em nossa relação com nós mesmos, com nossos projetos pessoais, com nosso trabalho, com nossas vidas, enfim.
Notei que quando a coisa do lado de cá — da minha vida — está bamba, o raio cai em minha filha. Por ironia da vida, parece que ser pai exige uma certa dose de “egoísmo” — bem entendido, claro: eu me refiro ao cuidado com nossas próprias tarefas, com nosso trabalho em especial, pois o cuidado com isso, longe de nos afastar dos pequenos, pode nos aproximar deles.
Ao menos, evita que sejamos tempestades emocionais ambulantes.