Em abril de 2005, um dia antes da eleição do Cardeal Ratzinger como Papa Bento XVI, eu fiz uma anotação em meu caderno de espanhol da qual me lembro até hoje. Não da anotação em si mesma, mas do momento em que a fiz.
Ainda não fui ao Google conferir, mas minha memória me diz que a eleição ocorreu na terça-feira. Logo, fiz a anotação na segunda — o que bate com o bendito curso de espanhol, para eu qual eu ia dolorosa e religiosamente todas as tardes de segunda e quarta. Eu detestava conjugar aqueles verbos e, naquela segunda-feira de abril, pouco antes de tocar o sinal para entrar, escrevi no canto do caderno que aquele era um momento histórico e, de alguma forma, eu achava importante registrar aquilo.
A minha vontade era acompanhar a eleição, ver quem seria o novo Papa, entrar nas comunidades do finado Orkut para ver o que se falava sobre isso etc. Mas não, nada disso. Naquela tarde, eu tinha que partir, vivir, venir, subir, hablar y escribir.
Meu único recurso foi a anotação no canto do caderno.
No dia seguinte, Habemus Papam!
E como vibrei ao ver o Cardeal Ratzinger aparecer ali… ! Vibrei, pois o “conhecia” por entrevistas e pela Dominus Iesus.
E agora, baita alegria!, eu o veria como Papa!
Meu encanto pelo Papa Ratzinger está em seus textos. Digo sempre que o Cardeal alemão foi um raio de lucidez no meio do século XX, pois a clareza e a profundidade com que ele expunha problemas complexos me espanta ainda hoje, e com ele ainda aprendo muito.
E, justamente por isso, ainda gosto de retornar aos seus textos de vez em quando.
Hoje, por uma razão específica, e devido à uma insônia que tem dado as caras quase todas as noites, decidi ler o curtíssimo Filha de Sião, um conjunto de conferências do Ratzinger em torno do lugar da mãe de Jesus na teologia.
São textos leves, em tom de diálogo, e que compõem um livro de menos de 50 páginas.
Para insônia, uma maravilha.
E logo nas primeiras páginas, um trecho me faz parar, ler novamente e repensar muita coisa. O trecho está no segundo capítulo do livro, quando Ratzinger comenta a querela nestoriana em torno do título “Mãe de Deus” (Τεοτóχος) atribuído à Maria. Apenas uma contextualização: segundo os nestorianos, à Maria poder-se-ia tão somente dar o título de “Mãe de Cristo” (Χριστοτόχος), uma vez que ela não teria qualquer relação com a divindade do Messias, mas apenas com seu nascimento biológico, diga-se, humano no sentido corpóreo.
Aqui, o trecho do Ratzinger, com destaques meus:
“O nestorianismo significa a construção de uma cristologia que exclui o nascimento e a mãe, de uma cristologia sem consequências mariológicas. Mas justamente o fato de Deus ser afastado para tão longe do homem, a ponto de tornar o nascimento e a maternidade – ou seja, sua corporeidade como um todo – algo exterior a ele, acabou se tornando, então, um claro sinal, para a consciência cristã, de que não se estava mais falando realmente de encarnação (fazer-se carne), de que o próprio centro do mistério de Cristo se encontrava ameaçado ou fora já destruído. A cristologia foi defendida, então, na mariologia; o que não significa, obviamente, a construção de uma concorrência que fizesse diminuir a cristologia, mas apenas o triunfo amplo de uma profissão de fé em Cristo levada ao seu extremo último.”
Assim, na mesma linha do Concílio de Éfeso, de 431, Ratzinger argumenta que a postura nestoriana, longe de defender a cristologia, colocava-a em risco ao separar divindade e humanidade da unidade da pessoa de Cristo.
O título, portanto, longe de ser um desvio da cristologia, destaca o núcleo daquilo que se afirma na encarnação, de modo que ao afirmá-la eu me comprometo com ele (e tem alguém que vai gostar muito desse termo aqui).
O título “Mãe de Deus” surge, então, como expressão da realidade da encarnação.

PS.: Fui conferir no Google. 19 de abril de 2005, terça-feira.
Para dormir, a cabeça já não serve mais — mas a memória está boa!
Que texto, Carlos! Adoro quando você escreve sobre Ratzinger, Edith Stein e Joana D'arc.